Na Cidade Branca (Dans la ville blanche - Alain Tanner, 1983)
- Diogo Hiroyuki
- 15 de fev.
- 3 min de leitura

“Eu sonhei que a cidade era branca, o quarto também era branco...
a solidão e a calma eram igualmente brancas.
Estou cansado.
Eu queria voltar a saber falar sobre as coisas.”
Há filmes que não se preocupam em contar uma história, mas sim em capturar um estado de espírito. Dans la Ville Blanche, de Alain Tanner, pertence a essa categoria. Ele não se apoia em enredos convencionais ou em arcos dramáticos límpidos e estruturados. Em vez disso, desintegra a narrativa na passagem do tempo, na inércia do protagonista, no silêncio de uma cidade que parece suspensa entre a presença e a ausência.
Paul (Bruno Ganz), um marinheiro suíço, abandona seu navio em Lisboa sem motivo explícito, ou plano definido. Ele se instala em um pequeno quarto de hotel, observa a cidade através da janela, percorre sem rumo por ruas vazias e cafés que não lhe pertencem. O único laço que mantém com sua vida anterior são as fitas Super 8 e as cartas que envia para Elisa, a mulher que, aparentemente, deixou. Mas suas palavras são fragmentadas, dispersas, uma tentativa pouco efetiva em traduzir um pensamento que ele próprio não consegue exprimir.
A Lisboa de Tanner não é um cartão-postal ensolarado, nem uma cidade vibrante de promessas. Lisboa se apresenta como um espaço melancólico, constituída de luzes brancas que rompem a tela, bondes que deslizam em um ritmo moroso, e um quarto de hotel que parece subsistir fora do tempo. Lisboa, aqui, não é uma terra de chegada, mas de dissolução.
Há algo em Paul que lembra o Meursault de Camus. Não tanto pelo que executam, mas pelo modo como se relacionam com o mundo: um distanciamento taciturno, uma inexistência de pertencimento que não se traduz em desespero ou angústia, mas em aceitação apática do tempo e do acaso.
Meursault encara sua existência com uma indiferença que o desprende das convenções ao seu redor; Paul, de forma menos extrema, parece igualmente alheio ao fluxo da vida. Mas enquanto Meursault se defronta com um destino inevitável, Paul não esbarra em nenhuma ruptura – ele apenas se dilui no tempo e espaço. Se há alguma possível inquietude em sua jornada, ela não vem de um choque com a realidade, mas da ausência de qualquer imposição de confronto.
Visualmente, por vezes Dans la Ville Blanche evocou em minha consciência a solidão urbana de Edward Hopper. Lisboa é filmada com a mesma sensação de deslocamento que seus quadros transmitem – ruas por vezes desertas, interiores iluminados por uma luz fria e personagens solitários enquadrados em janelas que os isolam do mundo exterior.
O quarto de Paul é um recinto simbólico do universo de Hopper: um cômodo impessoal, onde ele passa horas entre a cama e a janela, olhando para uma cidade que o ignora. Não há drama intenso nesses instantes, mas há um peso. A câmera de Tanner registra esse vazio sem urgência, consentindo que a solidão se impregne na imagem sem necessidade de palavras ou gestos desmedidos.
O silêncio efetua função crucial no filme. Embora haja momentos com trilha sonora, ela nunca se impõe como um guia emocional. Na maior parte do tempo, são os ruídos da cidade que preenchem o espaço – os sinos das igrejas, o som distante dos bondes, o vento cortando as ruas vazias. Essa escolha reforça a sensação de que Paul não está imerso em uma narrativa tradicional, mas sim vagando por um mundo que não se molda ao seu estado de espírito, apenas segue existindo indiferente à sua presença.
Dans la Ville Blanche não dispõe de resoluções. O filme não caminha para uma epifania, não conduz seu protagonista a uma solução permanente. Paul perdura à deriva, e nós, espectadores, ficamos com a percepção de testemunhar alguém lentamente se apagar, sem resistência, sem tragédia, sem um último aceno intenso e profundo.
É essa simplicidade que torna o filme tão impressionante. Tanner nos confronta com um tipo de desaparecimento que não é espetacular ou homérico, mas profundamente humano. Paul não se perde apenas na cidade branca. Ele se perde dentro de si. E nós, até certo ponto, nos reconhecemos nesse processo.
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