Luz de Inverno (Nattvardsgästerna – Ingmar Bergman, 1963)
- Diogo Hiroyuki
- 21 de fev.
- 3 min de leitura

“Nos momentos que antecederam sua morte, Cristo teve dúvidas.
Certamente, aquele deve ter sido seu maior sofrimento.
Deus ficou em silêncio.”
Há um silêncio que brada mais alto do que qualquer palavra. Um silêncio que pesa, que corrói, que se aloja nos ossos e nos faz questionar se, ao invés de conclusões, existe apenas o vazio. Luz de Inverno não é apenas um filme sobre a fé – é um filme sobre a sua erosão, sobre o que resta quando as convicções desmoronam e o que antes era conforto se torna angústia. Ingmar Bergman nos coloca diante do pastor Tomas, um homem que outrora guiava almas e agora se encontra perdido, prisioneiro de sua própria incapacidade de sentir aquilo que prega.
A frieza dos enquadramentos, as faces capturadas com uma proximidade desconcertante, a luz cortante que revela cada fissura da alma – tudo em Luz de Inverno nos desloca adentro da rotina de um homem que confronta não apenas o silêncio de Deus, mas o peso de sua própria solidão. Cada diálogo parece ecoar no vazio, cada gesto revela uma exaustão oculta. Não há tragédias visíveis aqui, mas sim uma morosa implosão interna, onde os questionamentos nunca encontram resoluções.
A comparação com O Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson, surge espontaneamente. Ambos examinam a deterioração de homens de fé, seus conflitos contra a incompreensão do mundo e a corrosão interna que os inquieta. Mas, se Bresson conduz seu protagonista por uma jornada de martírio que ainda alimenta uma réstia de transcendência, Bergman nos priva dessa possibilidade. Seu universo é árido, seco e desprovido de qualquer promessa de redenção. São dois ensaios sobre inquietação idêntica: quando tudo ao redor se torna um deserto, o que persiste do sagrado?
O silêncio do filme é fundamental. Em vários momentos, Bergman recusa todo e qualquer sustento musical, deixando-nos imersos apenas na crueza da cena, na respiração entrecortada dos personagens, nos sons mínimos que tornam tudo ainda mais incômodo. A ausência de trilha sonora funciona como uma extensão do eclipse divino que Tomas vivencia: um espaço em branco onde, teoricamente, deveria haver algo.
No entanto, Luz de Inverno não se restringe unicamente à crise de fé. É também um filme sobre a incomunicabilidade humana, sobre as rachaduras nas relações, sobre o amor que não se materializa, pois está, a todo instante, atravessado pelo cansaço e desalento. Marta, que ama Tomas plenamente, se observa perante a um homem inábil de retribuir esse amor, enterrado em suas próprias incertezas. Esse aspecto traz uma camada ainda mais lancinante ao filme, pois nos adverte que, muitas vezes, a maior condenação não é a ausência de Deus, mas a nossa própria incapacidade de nos conectarmos verdadeiramente com o outro.
A igreja vazia, o frio contundente e a impassibilidade do tempo reforçam a solidão latente de cada personagem. Bergman edifica um mundo em que a natureza parece indiferente ao sofrimento humano, onde os ciclos seguem inalterados e onde o tempo não se curva às angústias de um homem. A crueza da paisagem sueca, com sua vastidão gelada e suas estruturas austeras, reflete o estado emocional dos personagens. Tomas, preso em sua rotina e seu hábito clerical, parece incapaz de escapar do peso de sua própria existência. Cada ato, cada diálogo, cada gesto, por mais ínfimo que possa soar, é impregnado por essa atmosfera de inescapável vazio.
O final do filme nos deixa um gosto amargo, mas profundamente humano. Ele não se preocupa em propor soluções, apenas em nos posicionar defronte ao desconforto da incerteza. Apresentar um protagonista que, mesmo sem respostas, segue adiante, talvez seja um alento de que a fé não seja uma questão de certeza, mas de persistência. Bergman nos conduz diante da vertigem do desconhecido, do peso do silêncio e da fragilidade de nossas certezas. Em síntese, Bergman, mais uma vez, não nos conforta, mas segura o espelho diante de nós e nos força a olhar.
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