Uma Simples Formalidade (Una pura formalità - Giuseppe Tornatore, 1994)
- Diogo Hiroyuki
- 21 de fev. de 2023
- 2 min de leitura

“Não é bom conhecer os próprios ídolos.
Vistos de perto percebe-se que eles têm espinhas.
Corre-se o risco de descobrir que produziram...
...suas grandes obras
sentados numa privada...
...durante uma crise de diarreia!”
Quando se pensa em Tornatore, dez em cada dez pessoas pensarão em Cinema Paradiso e com justificação visto ser uma das mais belas, senão A mais bela carta de amor ao cinema. Uma Simples Formalidade talvez seja, com muito desejo deste que vos escreve, confesso, seu terceiro filme mais celebrado, mas é meu favorito da filmografia do diretor.
O filme começa em um bosque tomado pela escuridão e imediatamente testemunhamos uma arma apontar para a câmera seguido de um estrondoso e seco disparo. Alguém está morto. A partir daí violinos em tons hostis – mas, familiares – invadem a cena e tão logo os créditos iniciais sobem, percebemos que é uma trilha do brilhante Ennio Morricone. A câmera, em primeira pessoa, percorre o bosque sombrio vacilante e ofegante numa chuva torrencial até encontrar uma luz no fim do enquadramento para descobrir que estas luzes são, na verdade, policiais. A câmera deixa o ponto de vista de primeira pessoa e entendemos que este ser desorientado e ofegante era Gérard Depardieu. Esse é o ponto de partida do filme de Tornatore que de formal, há apenas o título. Limitar esta pequena obra-prima em gêneros fílmicos é sacrilégio ao brilhante roteiro que traz lembranças kafkianas, nostálgicas, metafísicas e por vezes nos faz sentir inebriados com a aparente desorientação de Gérard Depardieu.
Com a chegada do delegado a delegacia (de tons desfalecidos e abarrotada de mofo) incorporado por Polanski inicia-se o interrogatório, a priori, amistoso de Onoff, escritor recluso, visivelmente perturbado e incomumente agressivo que não é capaz de responder questionamentos simples do delegado. É fascinante observar as sutis nuances na feição de Polanski ao descobrir estar, comprovadamente, defronte de seu ídolo. Mas, com a, até então, descabida complexidade e contradição de Onoff em contrapor questionamentos simples e triviais do delegado, a idolatria se transfigura em desencanto.
Poucas vezes contemplei Mise-en-scène tão apurada. Absolutamente tudo em cena é praticamente organismo vivo e tem função crucial em cena. A chuva é intensificada de acordo com a tensão do interrogatório, após o ápice de cada embate no interrogatório, a chuva dá trégua e ouvimos apenas os pingos d’água cortando a tensão como uma lâmina, a máquina de escrever ajusta-se ao papel de testemunha do interrogatório assim como nós. Nada é por acaso.
Momentos antes do clímax, Onoff recorda melancolicamente ao olhar algumas fotografias das pessoas que ama ou amou, as que não soube ou não quis amar, as que lhe apertaram a mão e lhe sorriram e aquelas que apenas o olharam sem falar nada, e este singelo breve instante é de um encanto poético tão genuíno que perfeitamente rompe a tensão até aqui fabricada para dar o entendimento total da real significância desta obra-prima.
Como citado anteriormente, tipificar Uma Simples Formalidade é indigno das sensações que o filme produz durante suas quase duas horas. Mas, cometendo esta transgressão, diria que Tornatore faz um pujante relato sobre o rito de passagem, ou uma fábula metafísica, a depender da crença de quem o assiste.
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